Sem ônibus é pior

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– Tô atrasado.

– Novidade!

– Fazer pouco com minha cara não ajuda.

– Você quer que eu faça o quê ?

– Prepare minha marmita.

– Não sou tua mãe

– Mas é esposa

– Mas não empregada.

Saiu e deixou o marido olhando sozinho o celular, foi pra cozinha mas não preparou a marmita. Um desaforo.
Se quiser que voltasse para casa da mãe, já não bastava lavar as roupas, limpar a casa, preparar comida e trocar os lençóis. Agora tinha que fazer a merenda para o bebê da mamãe. Lamentável.

Juca saiu esbaforido, não disse nada, nem prestou atenção na Tv, ninguém assistia mas ela ficava ligada o dia inteiro como um membro da família, se Juca tivesse dado bola, teria visto o congestionamento quilométrico devido mais uma paralisação do rodoviários, dessa vez a coisa era séria, falência da empresa.

Helena gritou da janela para Juca, tentando lhe avisar sobre a paralisação, Juca não deu ouvidos, estava atrasado e sem marmita  mas o orgulho era maior que tudo isso.

Caminhou até a parada, estava cheia, esperou 20 minutos ouvindo sua playlist que ia de Tim Maia à Renato Russo, resolveu perguntar à alguém no ponto.

– Tá demorando muito né?

– Cê tá falano di quê?

– Do ônibus

– Num ta sabeno?

– Claro que não.

– Armaria, cê vivi ondi? Tá tudo parado moço, os homi da anapolina tão de greve.

– Isso não é novidade.

– Mas diz que agora é feio o trem, a empresa faliu.

Juca teve um sentimento de revolta inicialmente mas logo em seguida tentou lembrar dos momentos em que viveu dentro dos coletivos da empresa nesses últimos quinze anos. Bateu uma certa nostalgia, saudade.
Lembrou do dia que a moça lhe acordou e pediu que fechasse a janela, do dia da grávida dando a luz dentro do busão, do herói que conseguiu pegar a faca do assaltante e evitar o roubo.

O dia mais marcante foi o dia que sua amada lhe fizera uma marmita humilde com macarrão à alho e óleo com um ovo cozido, ao atravessar a roleta com a quentinha na mão, foi surpreendido por um solavanco que deixou seu almoço cair no chão, o ovo saiu rolando corredor adentro acompanhado dos olhares curiosos até finalizar seu trajeto na porta de saída.
-Tá mal heim! Gritou o adolescente
– Ainda bem que hoje tô levando lasanha. Disse um senhor

Juca não teve ação, apenas pegou o resto de seu almoço e sentou, uma senhora lhe deu três reais.
– Pega, hoje vai ser um dia difícil.

Inúmeras eram as lembranças mas ainda assim nenhum ônibus passou, nem lotação nem nada. Por fim, voltou pra casa, no caminho lembrou:

– Ainda bem que eu não trouxe almoço, teria estragado.

————
Depoimento de um ex usuário.

http:// Bye bye Anapolina: http://youtu.be/SraYE2GcpcE

As encalhadas da redação

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Cláudia, Lindalva e Maisa conviviam há  anos a mesma rotina, eram jornalistas,
escreviam sobre tudo, política, comportamento, polícia, esporte e negócios. Em tempos de ouro, quando o jornal não tinha encalhe, a redação tinha quase 100 funcionários, coisa de New York Times, gente correndo pra lá e pra cá, telefone tocando e o chefe gritando com os pulmões zerados:
– Nós precisamos de um furo, Cláudia liga pro delegado Onofre, Lindalva consegue uma exclusiva na casa civil e Maisa descobre alguma mutreta sobre o último jogo.

Era assim todo dia e elas adoravam, quem saísse mau em sua incumbência ficava uma semana nos classificados, o pior setor da casa, reduzir anúncio de casa, carro e milhas de avião. Mas ruim era a quinta feira, dia de escrever o anúncio de acompanhantes, homens, mulheres, putas, travestis e gigolôs. Era preciso conferir as informações, idade, cabelo, bunda, peito, exceto o pacote de biscoito(espero que tenha entendido).

Claudia era uma pessoa calma, sussurrava ao invés falar, não casou, ficou para tia, era gostosa mas uma víbora, queimava o filme de todo mundo para o chefe, sabia o poder de  suas curvas, nunca deu pra ninguém do jornal, na verdade línguas venenosas diziam que a cobra era virgem, uma tese de doutorado em mesa de bar.

Lindalva era a mais safada, topava qualquer saida, uma negra de um metro e oitenta, pele bronzeada, não levava desaforo, gritava sempre, mesmo sendo fácil, ninguém a desejava, devia ser o perfume, toque de amor da avon.

Maisa era bonita, elegante e mentirosa, descobriu cedo o valor de um boquete, era insuportável, ninguem há queria por mais de uma noite, não rodava porque tinha costas quentes, educada porem burra, burra pra caralho. Não casou porque não quis, acredita?

Quando não havia internet, a vida era maravilhosa, cada mídia no seu quadrado, rádio, Tv, revista e jornal.  A Tv alienando aos domingos, a rádio entretendo as domésticas, a revista passando o tempo das madames e o jornal vendendo notícias diariamente. Um bom político sabia onde investir seu dinheiro, jornalistas adoravam mimos, jóia era prato de entrada, cada babado que eu precisava de um anexo para os bastidores, mas o caso era outro, a chegada da internet, a popularização do celular e o desuso do talão de cheque. Um medo atormentava a redação, o desemprego. Tá certo que a datilografia já tinha sido trocada pelos terminais mas esse troço de portal de notícias iria desmoronar a vida de todos. Cada uma se salvou como pode, Claudia saiu com o chefe, prometeu algo mais mas enrolou e fingiu se de bêbada, Lindalva foi para redação de minissaia, queria dar mas o chefe se esquivou e a manteve no emprego por dó. Maisa pediu para apresentar uma solução para as demissões, fechou a porta e abriu a blusa, o chefe não deu bola.
– Fecha essa blusa, o ar tá ligada, tu vai gripar.
– Você não tem desejo?
– O nome disso é desespero.
– Você é viado, só pode.
– Escuta, tu não tinha algo pra me falar.

Maisa desistiu, da investida e fechou a blusa.
– Estagiários.
– O que tem?
– São mais baratos.
– Não é questão de pagar pouco mas sim de não pagar mais.
– Manda metade dessa redação embora, a Claudia mesmo, disse que está insatisfeita, Lindalva quer mudar de área, não vê ela estressada o tempo todo?
– E você?
– Tô livre hoje.
– Eu não.
– Duvido.
– Não quer sair daqui?
– Sou indiferente.
– Sei… Estagiários é?
– É a melhor saída.

O chefe pensou mas acatou, precisava manter a produção, seria o último suspiro.
Quando começaram a chegar aqueles jovens, inocentes com espírito de Wladimir Herzog misturado a Tim Lopes, a mulherada não perdoou, atacou sem dó. Os meninos tinham que andar em grupo pelos corredores, morriam de medo de plantão, as três vinham em todos, prédio vazio, atacavam sem perdão e o que acontecia nem enciclopédia Barsa seria capaz de registrar.

Os garotos começaram a abandonar o jornal, corria na cidade os boatos que o veículo havia mudado de segmento, o da sacanagem, todo mundo sabia das taradas. O chefe não podia deixar um boato virar notícia, a concorrência iria lavar a alma, tomou uma decisão: demissão para as três.

Todas já estavam sabendo, não teria escapatória, mandou chamar uma por uma , a primeira foi Lindalva que entrou gritando:
– Vá pra puta que pariu, nunca precisei dessa porra, seu viado.
Saiu com a sensação de dever cumprido, estava desempregada mas feliz, marcou um encontro com o porteiro, era a última tentativa, se não rolasse viraria freira.
Claudia entrou chorando mas de minissaia, ainda assim não resolveu.
– Claudia, infelizmente….
– Tá, tchau.
Saiu, deixou a porta aberta, Maisa entrou silenciosa, sentou olhando para o chão, era a vez do chefe descascar o abacaxi encima dela, todos os anos de mentira.
– Olha Maisa, eu nunca desejei tanto dizer isso..
– Eu tô grávida.

O chefe não iria livrar se tão facilmente de Maisa, agora ela tinha nove meses para arrumar um bebê.
Maisa, de burra não tinha nada.

Obs: A foto, tirei na parada gay de 2011, as pessoas nada tem haver com a crônica, apenas ilustração.

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Casei com o diabo

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Cida, uma senhora simpática, negra, cabelo liso, corpo bonito mas recatada, educada, fala baixo, trabalha,  não tem filhos, vive a espera de alguém ideal, um homem honesto mas que fosse bonito e goste de trabalhar.

– Bonito, Honesto e que trabalhe,só em sonho. Dizia sua vó

– Eu ainda vou encontra-lo, eu sei que ele está em algum lugar.

– Faz uma promessa.

– Promessa?

– Pra Santo Antônio,o santo casamenteiro.

Lá foi Cida acender uma vela para o santo, pediu e prometeu que nunca iria reclamar do marido que o santo lhe arrumasse, naquele mesmo dia, ficou para assistir a missa das 17h, conheceu Eusébio, o aprendiz de padre, cuidava do altar, preparava a hóstia, limpava o confessionário.

– Eusébio, vamos ao cinema?

– Hoje não posso, o padre João quer que eu arrume a sacristia.

– E amanhã?

– Tenho  que lavar a bata.

Cida desistiu, era católico demais, as últimas notícias dele eram que estava dormindo na igreja. Era bonito e honesto mas não trabalhava, ficou fora da lista. Parou de ir à missa.

Resolveu frequentar um centro espírita, Alan Kardec, mesa branca, mas morria de medo da entidade errar de médium e incorporar nela, ficava sempre de olho aberto, resolveu sair porque a coisa era séria demais.

A vó lhe pedira companhia para uma festa de criança, era dia de Cosme e Damião e o terreiro do pai Benedito estava cheio, casa de chão batido, todo mundo de branco e muita animação ao som de atabaques, Cida tinha gostado da festa e do filho do pai Benedito, Joaquim.

Não era feio, era elegante, usava um terno branco e chapéu, falava grosso, bebia e fumava. Cida não se importou, o mundo era cheio de vícios, começou a fumar também.

O namoro estava dando certo até o dia em que descobriu a profissão de seu namorado, bicheiro. O pouco que ganhava era perdido em bebida, fumo e aposta. Cida gostava de Joaquim, tinha pegada, era bom em tudo menos em aposta, não era honesto. Aproveitou enquanto pode e depois terminou, não ia dar certo, havia perdido o medo de entidade, já ensaiava uma pomba gira, as vezes um preto velho mas nada oficial, largou tudo e virou evangélica.

Resolveu frequentar uma igreja perto de casa, a avó não gostara da ideia “Crente é tudo chato, pra eles tudo é do Demônio” Ainda assim Cida estava gostando, era uma congregação nova, ministério pentecostal renovado luterano, ao comando do pastor Getulio o culto rolava, coisa calma, igreja vazia, era contemporânea demais, o povo gosta de show, campanha, desobsessao.

Cida tinha gostado do pastor, apesar de feio. Sabia que seria impossível encontrar tantas qualidades num homem só. Durante um culto levantou a mão e pediu para dar um testemunho, agradeceu, deu fim no cigarro e outras coisas. O culto ficou animado, teve dízimo e muita música. O pastor não tirava o olho da irmã, viu potencial.

No culto seguinte Getulio resolveu fazer uma benção coletiva, ficava de frente para o irmão e dizia:

– Senhor, entra na vida desta criatura.

Rolava um aleluia e era a vez do próximo, na vez de Cida, ela lhe piscou de longe, ao tocar sua cabeça, Cida pigarreou, foi a deixa.

– Te achei demônio, você tá atrasando a vida dela, deixando ela sentir azia e dor de dente….

Foi um show completo, se Joaquim tivesse visto casaria na hora, usou um pouco de cada entidade, pediu cerveja, doces e um cigarro, não foi atendida, o demônio saiu e a igreja virou um sucesso, satanás só descia em Cida, a igreja era renovada.

Casaram, tiveram filhos, a igreja virou igrejas e o pastor Getúlio um ídolo. Na mesa do café, enquanto servia o café ao seu digníssimo esposo

– Cida, você não precisa pedir cigarro toda vez.

– Nem você me bater.

Cida não largou o cigarro e nem Joaquim.