Andarilho

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Salvador não soube quando sua vida começou a ruir, deve ter sido assim que perdeu a esposa, acidente de carro, não chegaram a ter filhos, não deu tempo. Tempo. Este sim foi um insensível, 40 anos engolidos como uma colher de sorvete.

Salvador já havia feito de tudo, foi bancário, contador, vendedor e corretor. Os números sempre estiveram presentes, exceto quando devia um favor, mesmo agradecendo não esquecia da dívida, recompensava eternamente porém começou a dever favores demais e um dia a coisa apertou para seu lado. Não conseguiu esquecer a esposa nem superou a tristeza. Restou lhe apenas a cachaça como amiga, o cigarro como alimento e um colchão como companhia em uma casa abandonada.

Após ser expulso mais uma vez do bar, sentou na calcada e tentou lembrar de algum momento bom nos últimos 40 anos depois daquele acidente, chorou por não lembrar sequer do rosto da esposa. Decidiu. Iria se matar.
Caminhou em direção à marginal, fechou os olhos e começou a atravessar despedindo se daquele Salvador inútil, um ser invisível, não faria falta, tropeçou, caiu, sentiu o chão com os olhos fechados, não queria assistir sua morte. Demorou um pouco porem decidiu abrir os olhos, estava na calçada, do outro lado da rua, não acreditou como isso era possível, levantou decidido a não errar, ao iniciar a travessia, um homem ao lado.

– Não é hoje o dia da sua morte.
– Você não sabe nada da minha vida.
– Infelizmente eu sei.
– Foda se, não lhe conheço, ha tempos que minha vida perdeu o sentido.
– Esse é o sentido da vida.
– Ha, some, eu estou querendo morrer, posso?
–  Não pode, você irá morrer exatamente amanhã, por enquanto é isso, passar bem.

O homem bem vestido porém discreto saiu andando.

– E quem é você? Perguntou Salvador
– Seu andarilho.

Segundo a Tradição, todo homem é acompanhado ao longo da vida por uma espécie de anjo da guarda. Os andarilhos são espíritos que transformam os desejos de seus mestres (Nós) em realidade, sejam bons ou ruins, são proibidos aconselhar, ajudar ou aparecer, exceto no aviso de sua morte.

Salvador, curado do porre, ficou vagando pela cidade, pensando no que aconteceu. Tivera um sonho com um cara falando que sua morte seria amanhã, pela primeira vez viu que não era delírio. Pensou seriamente em quem iria se importar, haveria flores? Lápide? Quantos se despediram?

Uma criança corria em direção à pista em sua bicicleta, a mãe gritava desesperada para que o menino parasse, Salvador correu e puxou o moleque pela blusa, jogando se os dois no chão. A mãe agradeceu e o menino lhe abraçou.
– Você me salvou tio

Era o primeiro abraço em quarenta anos, foi embora sem se despedir. Agora teria alguém para ir no seu enterro e o andarilho lhe concedeu mais um dia.

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O Mago do Chopp

THIAGOMAROCA

– Alô?

– Samuel?

– Iae mano…

– Beleza man?

– Mais ou menos…

– Que tá pegando?

– Num sei velho.

– Poxa, se decide. Terminou com a mina?

– Não é nada disso, é que… eu ando meio desanimado

– Mas com o quê?

– Ah, num sei, to afim de mudar de ares.

– Vai virar garçonete?

– É sério, to querendo fazer algo novo.

– Sim, mas o que?

– Tá afim de escutar mesmo?

– Claro! (Não dormiria sem saber)

– Eu quero abrir meu próprio negócio

– Uma Oficina? Um Pet Shop? Uma casa de massagem?

– Não! eu quero criar algo inovador, revolucionário e clássico ao mesmo tempo.

– Uma estação espacial em Cuba?

– Não

– Uma fábrica de picles? Vai vender botão personalizado?

– Nãoooooo.

– Fala logo porra.

– Seria uma choperia, O Taberneiro

– O Taberneiro?

– Isso! um novo conceito de pizzaria e choperia na cidade.

– Explica isso direito

 O Taberneiro seria clássico devido ao design lembrando as tavernas da idade média, os banheiros também manteriam a mesma qualidade, tipo rodoviária depois de um feriadão.

A revolução aconteceria no quesito sociabilização da coisa, onde haveriam apenas três grandes mesas para que todos tivessem que sentar juntos, trocar ideias, conhecer gente nova e muito diferente. Os nomes das mesas seriam lembranças da infância do Samuca, Shiryu lembrando os Cavaleiros do Zodíaco, Ranger Branco lembrando os powers rangers em sua alameda dos anjos e por fim o famoso e eternizado Pikachu lembrando o valor que era uma pokebola. O rodízio de pizza era obrigatório e os sabores os mais fajutos, calabresa, marguerita, frango e quatro queijos. Mulheres vestidas de Vilma (Flinstones) Seriam as garçonetes.

– Samuca? E o chopp?

– Calma, agora vem a melhor parte.

O chopp em O Taberneiro estaria todo armazenado em grandes barris, daqueles que o Chaves mora dentro, os barris fariam parte da decoração  inovadora da birosca.

– E a inovação?

– A grande e única atração da casa: O MAGO DO CHOPP.

O Mago do chopp seria um ser iluminado que iria descer no meio do salão com o controle das tvs na mão dando inicio as exibições mais importantes de futebol grupo B, tipo Asa de Arapiraca com o Náutico. Enquanto ele desce as pessoas gritam seu nome:

– Mago! Mago! Mago!

E do nada, ele iria gritar:

– CHOPP DE GRAÇA POR UM MINUTO AEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEOOOOOOOOOOOOO

O povo todo se amontoando uns sobre os outros para conseguir pegar uma caneca gratuita de chopp, haveria muita briga e arremesso de canecas na hora de pegar o brinde, seria um momento lindo na vida da cada um, já posso ouvir os comentários:

– Ontem fomos ao Taberneiro, foi foda.

Ainda posso ouvir o eco

– Mago! Mago! Mago!

Eu frequentaria fácil um lugar desse.

 

A Boleira

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Tia Heloisa era a melhor tia de toda a quarta série, as datas mais esperadas eram as festinhas da escola e o aniversário da professora Marli que, apesar de ser uma carrasca, ganhava um bolo de presente todo ano. Bolo esse que era artesanalmente feito pelas mãos da nossa Tia Heloisa que era também a mãe do Ricardinho, ruim de bola mas que sabia dançar e acabava sempre rodeado de meninas. Quando eu digo que o segredo de todo homem é saber dançar, ninguém me leva a sério.

– Pessoal, o aniversário da professora tá chegando!
– Ricardinho…
– Tá, vou falar. A mãe de mais ninguém aqui sabe fazer bolo não?
– Mas é que tua mãe é boleira. Disse Soninha
– Ela não gosta desse nome, se continuar, não vai ter bolo.

Tia Heloisa odiava o nome que o bairro lhe dera: BOLEIRA. Nunca admitiu que lhe gritassem na rua:

– Oh boleira!

Virava as costas e ia embora, o bolo sempre esteve presente em sua vida, na infância era uma bola pois só comia bolo, na adolescência levou bolo dos pretendentes, já adulta resolveu se dedicar para aquilo que tinha maestria. Bolo.

Perdia encomendas toda vez que era chamada de boleira, aos poucos ganhou o respeito do bairro, mas sempre havia um espírito de porco para desfazer o sorriso da mãe do Ricardinho. No mercado quase deu na cara da caixeira.

– A senhora é a boleira? Meu filho estuda com o seu, é o Henrique.

A veia temporal destacou no rosto mas ela se segurou, estava a comprar as coisas para o bolo da professora, Tia Heloisa gostava dela, a professora, tinha ensinado matemática à seu filho. Saiu do mercado sem dar bom dia.

Em casa preparou o bolo com todo carinho e atenção, tinha aprendido que o professor era um segundo pai, merecia respeito, por isso ela fazia sempre sua receita especial: Bolo de formigueiro com cobertura de chocolate e coco.

No dia seguinte, a surpresa da professora (jura?). Balões, dizeres no quadro, um cartão feito a mão com assinatura de todos, apesar da oposição dos bagunceiros. Por fim entra Tia Heloisa com sua obra de arte, uma vela acesa puxando um parabéns animado, estava escrito Marli com anilina e coco, os meninos estavam tonteados com o aroma.

Termina em é pic, é hora, rá, tim, bum, o nome Marli ecoando pela sala. Assopra vela. Agradece. Corta o bolo e oferece:

– Estou muito feliz pelo carinho, mas não posso deixar de agradecer a quem preparou essa delícia, a nossa boleira…

Não houve tempo de concluir a frase, Tia Heloisa enfiou o bolo na cara da professora.

– Boleira é o caralho. É Tia Heloisa!

Foi a gota d’agua

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