Eu não sei me despedir

Eu nunca pensei sobre isso, mas a verdade é que eu nunca vi alguém se despedir. Parece até um pouco de bobagem, isso que eu estou falando, mas sempre que vou para alguma despedida, o evento já aconteceu. De repente isso começou quando eu era criança, minha mãe me acordou de madrugada ainda, me vestiu e disse que iríamos fazer um passeio, somente eu e ela. Levou uma trouxa com algumas roupas e um carrinho junto.

Nunca andei de ônibus pela cidade à noite, mas aquela “noite” não era igual às noites da nossa vila que tinha gente gargalhando, cantando e alguns casais brigando enquanto a polícia descia o esculacho nos jovens acordados. Aquela noite estava diferente, ruas vazias e frias, as luzes dos postes bem amarelas e névoa branca parecendo aqueles filmes de motoqueiros que passavam no canal 4. Aos poucos, iam surgindo os primeiros raios de sol, minha mãe cochilava no balanço da viagem, eu olhava atentamente o que seria meu presente, pela primeira vez seria o único a ganhar algo, sempre tendo que dividir tudo com meus irmãos, aquela noite não me trouxe o sono de volta porque eu tinha sido escolhido para algo.  

– Aqui será sua nova casa, você vai morar e estudar aqui.

Não tive tempo de refletir sobre aquilo, nem de chorar. Aquele lugar era a FEBEM, que nos anos 60 prometia ensinar Fé, Educação, Bons modos, Etiqueta e Moralidade. Me ensinou muito mais do que isso, mas o detalhe é que eu não vi minha mãe partir, pensei que ela fosse voltar logo mas isso levou alguns anos. Com o tempo, alguns partiam e voltavam, outros eu nunca mais ouvi falar. Minha mãe me visitava e sempre ia embora quando falava que estava indo ao banheiro. Talvez por isso eu não aprendi a me despedir.

Durante os anos na FEBEM, contava os dias para sair daquele inferno. Eu entrei meses depois de ouvir no rádio o Brasil ganhar a copa de 1962 contra Tchecoslováquia, meu aniversário naquele ano, também foi lá. A minha obrigação era trabalhar na cozinha, tinha de cortar o doce de marmelo toda sexta-feira, as facas eram cegas devido a alguns internos quererem se rebelar contra o sistema. O doce tinha que somar 100 pedaços para toda a ala e eu nunca conseguia fazer o corte certo, sempre era acusado de comer, como punição ganhava uma marca de lampião quente no braço pra aprender que alguns ficaram sem doce por causa da minha gula.

O Ano era 1970, ainda tinha dezessete anos, a alforria só era dada quando se cumpria 18, naquele lugar e naquela idade já sabia furtar, fumar maconha, beber escondido e brigar, brigar até desmaiar. Já tinha tudo para ser um sujeito homem. Consegui sair no início de junho daquele ano, não consigo lembrar do meu último dia naquele lugar, mas me lembro do 4 x 1 na Itália que nos demos na final da copa no México. A ditadura em alta, mas alegria daquele dia me fez esquecer os anos no internato e a repressão das ruas.

Minha mãe, humilde, só pedia que nós fôssemos servos de Deus quando saíssemos daquele inferno.

– Com saúde, a gente dá um jeito.

Trabalhando em um restaurante na Liberdade, bairro típico de imigrantes japoneses de São Paulo, conheci muita gente e fui me despedindo das lições aprendidas naqueles anos na FEBEM, até me apeguei a uma japa filha de um cozinheiro chefe, mas não era isso que o pai dela queria pro futuro de sua filha.

Morei em várias cidades, cada uma deixava uma parte de mim, trazia um pouco daqueles lugares comigo também.

Sempre tive como casa, os meus sapatos, aonde eles me levassem ali eu estaria por inteiro.

Em todo lugar, onde a minha história escreveu-se, eu não disse adeus pra nada, nunca fechei uma porta, enterrei histórias de amor ou deixei pra trás algo que tenha me feito sofrer, trago tudo nos meus pés doloridos.

Depois de mais de 60 anos, talvez aquele fosse um dia pra me despedir, vendi tudo e mudei pela sexta vez de estado, talvez tivesse a sensação de ainda estar sendo procurado pelos monitores da Febem, algumas queimaduras ardem até hoje.

Naquele dia, comprei cigarro, tomei uma dose de conhaque e embarquei, eram 22 horas que me separavam do meu próximo destino, tinha tempo de sobra pra contemplar as imagens do sertão nordestino e ver a minha vida passando pela janela do ônibus sem precisar me despedir de nada, tudo que eu vivei sempre foi meu presente, o meu passado eu sempre fiz questão de me despedir.

 

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OBS: Este texto relata um pouco a história do meu pai, nesta foto estamos nos despedindo, ele está se mudando.

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