Ricardo

– Alô!

-Está sabendo do Ricardo?

– Não. Não nos falamos há algum tempo, o que houve?

O Ricardo foi o meu primeiro amigo na nova escola, eu tinha nove anos e acabado de mudar de cidade, chorei na despedida mas me alegrei ao saber que na escola a gente ganhava doce e podia levar pra casa. Durante a terceira série, nós tínhamos a professora Maria Helena que era muito paciente e equilibrada com aquela turma de 30 alunos oriundos de diferentes regiões do país. Eu tinha acabado de perder um dente de leite, Ricardo enquanto maquiava com canetinha hidrocor o rosto da Amanda, notou de que minha boca saia sangue. Ele me perguntou o que houve e eu mostrei pra ele. Depois da aula, descobrimos que morávamos na mesma direção, durante o trajeto de volta, Ricardo me apresentou a gangue do meio dia que consistia em apertar as campainhas das casas e correr alucinadamente para não ser pego.

O Ricardo sempre foi diferente dos outros garotos da nossa turma, ele sempre preferia dançar, pular elástico ou jogar queimada com as meninas do que figurinha no bafo ou brincar de golzinho com os meninos. Durante a aula, sentava perto delas, conversava o dia todo e não falava um palavrão, tinha aptidão para comunicador, bem melhor do que eu, garanto.  Até fingiu gostar de uma menina da rua de cima, a Letícia. A menina era bonita, mas podemos dizer que ela era muito diferente do perfil do Ricardo, digamos que ela era pra frente, termo utilizado pela minha mãe e que talvez hoje não faça muito sentido, ela já beijava na boca enquanto nós apenas mandávamos bilhetinho e no máximo um andar de mãos dadas até a esquina.

– Tô apaixonado!

– Quem é a vítima?

– Uma menina que mora na rua acima da minha, Letícia. Você conhece?

– Não.

Sim, eu conhecia, mas não disse nada. Ela já havia dado encima de mim, mas não podia jogar agua fria no sentimento que meu amigo estava se esforçando pra expressar. Com pouco tempo, ela tratou ele como alguns meninos já o tratavam, ele desistiu. Se apaixonou pela Michele, que era um ano mais velha e já estava na quarta série, mas pela Michele, todos eram apaixonados, ela era a única menina da escola que já tinha beijado um menino no portão de entrada, dando espaço para pensarmos que devemos gostar ao menos de uma menina que já sabia o que era um beijo na boca, coisa que nenhum aluno da tia Maria Helena sabia.

O Ricardo sempre transformava todo trabalho em apresentação. Declamava, cantava, dançava com coreografia, inclusive em inglês, o que já começou a ocorrer nos anos seguintes da educação fundamental. Ricardo falava inglês enquanto a turma tentava aprender o verbo to be, coisa que aprendi a pouco tempo atrás. Talvez no seu sentimento, lá no fundo, ele soubesse que sua salvação estivesse em outro lugar, quem sabe outro país.

A oitava série foi o último ano que estudamos juntos e a mais memorável, Ricardo treinava uma apresentação  em inglês com dança coreografada, naquela época já despontava cantoras pop’s. Um moleque atentado de nome Hugo o empurrou, repetindo incansavelmente o bullying diário sobre sua própria fragilidade sexual contra a de Ricardo, um empurra-empurra fez nosso personagem real jogar a merenda da escola pública, uma sopa, em seu encontro mas este desviou, acertou uma aluna quieta que devolveu sua sopa contra Ricardo, uma guerra do lanche. Todos foram suspensos no final da aula, fomos embora cheirando a sopa no cabelo e nas blusas.

Fiquei muito anos sem noticias dele, sempre ouvia boatos de coisas boas e ruins, sempre guardava as boas. Ele tinha assumido sua homossexualidade, estava bem consigo mesmo. Os anos escolares e educação familiar de nossa geração não nos ensinou a conviver com o diferente e aceitar suas escolhas. Nós aprendemos isso na marra, e algumas vezes(me incluo nisso) fomos cruéis com tantos outros Ricardo’s por aí.

O telefone não toca mais, o mundo vive a base de mensagens e publicações em redes sociais. O Ricardo que não era muito ligado a tecnologia havia postado um texto triste dando adeus e sugerindo o fim de sua existência, pedindo perdão por tudo. Meus seis anos de convivência com ele passaram na minha cabeça, como eu podia ter apagado o Ricardo da minha vida? Nós éramos bons amigos, riamos de tudo, fazíamos piada um com o outro. Liguei em seu celular, estava fora de área, não respondia as minhas mensagens, apelei para uma amiga em comum.

– O Ricardo tentou se matar!

E ninguém fez nada. Todos eram culpados.

Estava internado, sendo controlado com medicamentos, família frágil e dividida, incapaz de reconhecer tantos problemas a serem resolvidos internamente. Ele havia desistido de viver e era culpa minha, nossa, de todos que não souberam aceitar ele assim. Inclusive ele.

O primeiro sintoma de desaparecimento é quando não fazemos falta pra mais ninguém. O segundo é não sentirmos falta de ninguém, é preciso se redescobrir, se amar e a partir disso começar a sua nova construção, religar sua fé e se conectar com a vida, a sua maneira.

Enquanto escrevo, algum outro Ricardo está tentando contra a própria vida, talvez por um motivo diferente do meu amigo. Nenhum sofrimento irá cessar as injustiças que a vida nos coloca, seja forte Ricardo, você não está sozinho, não sou só eu que acredito em você, meu amigo.

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